terça-feira, 12 de agosto de 2008

Xícaras

Eram inicialmente um grupo de 6. um conjunto de porcelana Belga, muito bonito, em cores bem vivas e harmônicas. Fruto de um presente, lembrança da última viagem de parentes distantes pela Europa. Fazia gosto tomar qualquer liquido, seja café ou chá ou até mesmo chocolate quente. Antes delas, costumavamos tomar nosso café matutino em medíocres copos americanos nada charmosos e de origem desconhecida. Eram todas as 6 xícaras do mesmo modelo, porém com cores diferentes.
A minha favorita, qualquer um poderia dizer, era a preta. Tinha uma cor bem definida; um preto diamante-negro. Não era a mais alegre ou mais bonita; era exatamente igual as outras. Sua beleza estava ímplicita na ausência de cor. Foi amor a primeira vista; quando a vi, imediatamente a escolhi. Só tomei meu café com leite e baunilha com ella. Às vezes tomava água também, previnindo-me de agum possivel ciúme improvável de copos brasileiros. Ainda me pergunto o que ela estava fazendo ali, no meio de tantas cores alegres. De uma coisa tinha certeza: essa xícara fora feita por uma fada. Embora não distribuisse felicidade, tinha lá seu feitiço; roubava sorrateiramente todas as atenções para si. Talvez por ser tão menos alegre, tão menos bonita, tocava nossos corações, emersos em tanta solidão; e acabavamos nos sentindo um pouco menos solitários em nossa realidade privada, particularmente tão pública. A xícara emitia um sinal, captados apenas pelos corações mais parecidos com o seu tom diamante-negro. Sentia, sempre que a olhava, que todo o seu mal poderia fazer muito bem, e que até mesmo a tristeza mórbida de uma lágrima quente escorrendo por uma face sofrida, se tornaria um maravilhoso e raro espetáculo. Tudo se convertia. Hoje costumo sentir esse sentimento de felicidade indevida quando estou em crises. nenhum psicólogo poderia explicar; mesmo se pudesse, não acreditaria em nenhuma palavra.
Particpoude várias ocasiões importantes, bem como foi a única amiga dos que estiveram sozinhos e sem sono, dentro da madrugada fria. Abrigou os mais diversos gostos, e cores, e sentimentos impossiveis. Teve seu fim em uma segunda-feira melancólica, desapercebida de qualquer atenção. Mamãe quebrou e a jogou fora.
Haviam mais 5 xícaras.
Era a branca a mais irritante, se é que sou capaz de julgar o que parece ser irritante. nunca consegui sequer olhá-la por mais que alguns segundos sofridos. Era uma xícara perfeita, despertando assim, minha total falta de compaixão e atenção. Havia um perfeito contraste irritante, como jamais vi e verei: qualquer liquido, por mais morto que esteja, ganhava vida imediata e temporária dentro dela. Quando ninguém estava por perto, e quando já era bem tarde da noite, tinha a certeza de que ela, trancada no armário da cozinha, brilhava; não sei porque acho isso. Mas era certo que brilhava no escuro.
Às vezes olhava fixamente na sua direção, invejando os liquidos que ali ficavam e desejando por um momento sentir tanta vida. Se fosse uma xícara, jamais seria um xícara branca. Ainda não sei a cor exata, talvez laranja, talvez não-laranja; estaria disposto a ser qualquer outra cor, menos branco. Talvez até fosse branca, mas seria um de um tom particular de branco mesclado com manchas pretas, passando a impressão de uma paz frustrante, indevida de uma simples xícara, perdendo assim todo o meu brilho e minha paz. Se fosse uma xícara, possivelmente não seria a favorita, ainda que fosse exatamente igual a todas as minhas irmãs. Ficaria isolada, sendo convocada apenas quando não restasse mais nenhuma outra opção. Se fosse uma xícara, teria a companhia fiel de um pires. Às vezes pires não são lembrados. É somente convocado a apresentar-se a mesa quando quer mostrar-se classe. Os pires são mais nobres que xícaras, sempre foram. carregam consigo todo o fardo de uma xícara. São subordinados. Os pires nunca são lembrados pelo seu enorme esforço, apenas pela sua beleza momentânea. Atrevia-me então, a dizer uma mentira conveniente, na intenção de rebaixar-me um pouco mais: se fosse um pires, seria um simples e pobre pires opaco e sem graça.
A xícara branda, um dia apagou. Perdeu sua asa em uma queda e ficou sem valor.
A história mais ilariante, de certo, é a história da xícara verde. Era a xícara mais mal-interpretada. Poucas vezes lembrada por todos. Foi seu maior feito, um galo vistoso na cabeça do tio, que passava férias em casa; alvo certeiro da ira diabólica de mamãe em uma madrugada indevida. Em um sábado qualquer, já dormíamos, quando escutamos barulho de cachorros, que tirou do inefável mundo dos sonhos. Mamãe estava um pouco mais nervosa que o normal. Sem sono, sentou-se na mesa da cozinha e tomou um café, para despertar da agonia de não conseguir dormir. Sentiu uma mão em seu ombro, e sem pensar duas vezes, usou a xícara como objeto de defesa. A xícara despedaçou-se e esse tio nunca mais passou férias em nossa casa.
Ainda tem o mistério da xícara caramelo. Em uma noite a xícara foi guardada no ármario, no outro dia já não estava mais lá. Não havia evidencias de crime, mas eu sabia que havia sim um crime. um crime muito perfeito. Sou perito em resolver mistérios, desde sequestro de talheres até suicídio de copos; mas desaparecimento de xícara? Minha tese baseia-se em algo que n unca poderei provar, mas que tenho a certeza convicta de que aconteceu, e que foi de má fé. Não acho que foi desaparecimento, e sim homicídio doloso. E quem matou foi a xícara branca, que brilhava toda a noite. Talvez o seu brilho tenha matado e absorvido a caramelo. Talvez, ainda não posso provar. Mamãe disse que sumiu, e que de vez em quando as coisas somem, sem muita explicação. Sumiu, como tantos outros fantasmas do meu passado sombrio. Há um lugar aonde tudo que some, apareçe? Deve haver, deve haver.
Por fim, o pior: as xícaras esnobes. Vermelha e Azul. Mamãe viu alguma semelhança entre elas, e as ultilizou, enquanto vivas, para as prolongadas conversas no escritório que papai mantinha em casa. Papai nunca tinha tenpo pra família, apenas para os negócios, e mamãe sempre se ocupava, quando livre, servindo os chás-da-tarde no escritório de papai. Iam cheias, voltavam vazias, para novamente retornarem com algum café. Eram as xícaras, as únicas que ouviam as conversas confidencias que papai nunca nos deixou escutar. Quando as via indo para o escritório, cheias de algo delicioso, sentia um ar esnobe, como que fala: sei mais que você jamais poderá saber. E quando as via voltando, sentia que de algum modo, mesmo vazias, compartilhavam informações importantes. Comecei a sentir raiva. Em uma tarde, cansado de televisão e videogame, vi mamãe atravessando a sala, pela 5ª vez, com uma bandeja, usada apenas para as xícaras. Pedi para eu mesmo levé-las à papai. Carreguei meus desafetos, encarei-as com medo do que poderia fazer, e as soltei acidentalmente, quebrando em vários pedaços e causando mais trabalho pra mamãe.
Papai comprou um novo jogo de xícaras. Essas eram comuns, com alguns desenhos; todas iguais. As reuniões continuavam e mamãe desfilava elegantemente com outras xícaras, cuja história ainda não sei.

7 comentários:

Katharyne disse...

Como eu disse fantástico, como você doma as palavras,fantástico.

coke debut disse...

Iru eu adorei esse texto, vc quem escreveu? está ótimo rapaz! gostei mesmo.

xxAntonio

Heyner Mercado disse...

Eu tava comentando aqui, alguma merda aconteceu e tudo se apagou. Que bosta!
Gostei da forma como te referiste às xícaras, creio ter entendido o que querias dizer. Acho legal essa forma como transportas para objetos características humanas, presentes em cada um de nós, umas mais, outras menos.
Se eu fosse uma xícara, seria a verde. Não por ter se espatifado na cabeça do teu tio, mas por ser verde. Adoro o verde, mas não sei diferenciar suas tonalidades, e confundo uns tons mais claros de azul com verde. Esquisito isso, mesmo assim, eu amo verde. É a minha cor preferida, é a cor que considero mais viva, é a cor que me passa mais vida.
Preta? Eu teria uma, possivelmente, para lembrar que "there are always two sides in an human soul", e não me afastar da dor quando eu precisar dela, ou até mesmo momentos meus, só meus, para eu (re)pensar em tudo.
Saudades do caneco azul que tive entre 1995 e 1999, e maldita seja a tarde de domingo em que a pesada mão de meu pai, em um único gesto, destruiu o meu maior ouvinte de confissões, delírios e devaneios, que ainda por cima não reclamava de nada que eu falasse...

Icaro Rabelo disse...

AUHUHau .. Heyner, case-se comigo.
:D
Eu seria a xicara laranja mesmo.
Adoro laranja.

Anônimo disse...

Muito bom...muito bom !!!Não sei como vc consegue escrever tanto...hehe.. Sempre digo isso neah ?!Mais os textos ficam perfeito !!!MUITO BOM !!!
Eu queria ser uma xicara roxa..
(minha cor predileta!! huahuhua)

Alessandra Castro disse...

Hahaahah nunca pensei que xicaras fossem tão interessantes, quer dizer, interessante mesmo é o senhor! Que tornou-as quase que fascinantes. Hummmmm eu queria ser uma chumbo sac? Quase cor de céu nublado. ;)

Luiza Din disse...

eu apenas preciso de alento.