quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Parte 4 - Luz, camera e ação.

A partir de certa hora, eu apenas me reclinava sobre a sacada e observava por vários minutos aquelas pessoas dançar, completamente extasiadas – algumas, inclusive, sob o efeito de drogas. Quando isso acontecia, eu retirava a minha câmera e filmava aqueles desconhecidos em seus momentos de glória. Havia aquele rapaz muito bêbado que chamava atenção, aquela outra menina que gostava de dançar até o chão. Bem no meio havia um casal que se beijava e logo atrás tinha aquele rapaz tímido que ficava balançando a cabeça. Olhando no visor da máquina, perdido, perto da escada havia um rapaz. Algo nele, perto da escada que dava acesso a parte superior, me encantava; de olhos fechados, ele usava suas mãos para dançar majestosamente – como se aquilo fosse a sua vida. Seus movimentos eram coordenados e isso o permitia segurar a bebida transparente no copo de plástico enquanto se movia. Em alguns momentos ele parecia desaparecer daquele lugar e ir para outra dimensão; um lugar em que todos eram felizes.
A câmera repousa nele, gravando por alguns minutos aquela tranqüilidade. Ele abre os olhos, despertando de sua bela vida. Olha para os cantos, procurando alguém. Bebe um pouco e olha em minha direção. Imediatamente eu movo a câmera para outra pessoa – um bêbado que dançava ridiculamente. Discretamente tento reposicionar a câmera no rosto do garoto da escada. Ele ainda olhava pra mim. Eu, um pouco reticente, decido continuar filmando. Ele, sério, continua olhando na minha direção, como se quase adivinhando que entre várias pessoas naquele lugar eu realmente o filmava.
Ele levanta a cerveja em minha direção e acena. Sorri e logo depois vai embora.
Pouco depois o vejo subindo a escada, sem dificuldades para me filmar. Decido continuar filmando. Ele chegou um pouco destemido, visivelmente envergonhado, perguntando se nós poderíamos conversar. Na mão, uma cerveja. “Cê quer?” Eu acenei e sorri, mas estava muito escuro pra ele poder perceber. Despertei da monotaneidade que ficar observando as outras pessoas dançar causa e entrei em um novo clima de liberdade e simplicidade que signifivava conseguir amor facilmente.
A música era patética, como sempre, mas todo mundo fingia gostar, porque afinal de contas, era sábado a noite e todos esperavam se divertir. A grande verdade é que ninguém se divertia – isso estava gravado. Todos fingiam que estar naquele lugar significava diversão. No dia seguinte, provavelmente, eles contariam aos amigos que dançaram pencas, que beberam pencas, que pegaram pencas, que estão de ressaca e que eles deveriam ter ido.
Eu pensava nessas coisas.
Eu notava que ele tentava falar alguma coisa, mas eu não conseguia ouvir. Eu sinalizei com o meu dedo apontado ao ouvido, sinal suficiente para ele entender que tinha muito barulho. Ele sorriu, olhou pra baixo e levantou as mãos, aproveitando a música. Eu simplesmente dei um longo gole; a cerveja estava com um gosto horrível.
Ele tentou novamente falar algo, dessa vez gritando mais próximo do meu ouvido. Eu ainda não havia entendido, mas balancei a cabeça e disse sorrindo: eéééééé!! Então, ele chegou mais perto e pôs a mão na minha cintura, me empurrando contra o corpo dele. Pude sentir a barriga definida – realmente, era alguém bonito. Ele chegou ainda mais perto e dessa vez falou mais baixo: me beija.
De repente, a música parou enquanto eu me concentrava nos seus lábios úmidos de cerveja, sentindo aquele bafo meio gelado, meio incomodo e meio sedutor. Fixei meu olhar no rosto dele e sorri. O mais engraçado é que eu havia entendido aquilo. “Me beija”. Pus a palma da minha mão no seu rosto.
- Melhor não.
Ele riu um pouco, de cabeça baixa. Quis saber por quê. Eu apenas dei de ombros e fui embora pra outro lugar. Enquanto eu tentava passar pelas pessoas, eu notei que ele me seguia. Fiquei um pouco nervoso; minhas pernas ainda trêmulas e meu coração acelerado denunciavam a minha fuga. Por entre as pessoas eu não ouvia nem enxergava nada além da saída. Olhei pra trás, procurando seu vulto; apenas notei suas as roupas: camisa gola pólo listrada e calça escura. Tinha um cheiro forte.
Ao constatar que ele havia desistido, fui ao caixa e paguei o que tinha consumido. Ao lado, em um sofá, duas meninas choravam; algo sobre traição de amigos. Estavam bêbadas, claro. A moça oferecia meu troco e eu devolvia um gentil sorriso seguido de um “muito obrigado, boa noite a senhora”.
Sentei no banco de pedra que ficava do lado de fora da boate. Ainda era possível ouvir a música abafada que ditava o ritmo da bendita felicidade que eu nunca conseguia encontrar naquele lugar. Meus ouvidos faziam aquele som estranho de quem sai de um lugar com muito barulho. Com pouco tempo lá fora, pude perceber que era estranhamente calmo do lado de fora. O silêncio só era quebrado pela conversa alta dos taxistas com as garotas de programa.
Retirei a câmera do meu bolso e revi os vídeos – sentindo, dessa vez, raiva, por não ter permanecido e aproveitado. Como eu poderia me denominar feliz, se nem ao menos consigo ficar em um lugar cheio de felicidade? Revi os vídeos dos estranhos, pensando em talvez editar e fazer um documentário sobre essa vida de noite. Uma risada alta cruzava a rua inteira. Discretamente apontei minha câmera para a loira de mini saia preta.
Por alguns minutos foi possível escutar as aventuras recentes da garota de programa. Ela falava dos fatos engraçados, dos ócios do oficio e de como garota de programa era mal remunerada. Falava dos produtos de beleza, das exigências que os senhores faziam e de como eles a tratavam bem. O taxista, de repente, olha em minha direção e imediatamente a loira se aproxima, desfilando. Ao chegar mais perto da luz pude perceber que suas feições eram mais masculinas. Era um homem ou uma mulher?
- Oi gatinho, me filmando né?
Fiquei calado.
- Calma, calma, pode filmar se você quiser. Sem paranóia ok? É 100 reais. Sou ativa e passiva. O que você quiser.
Acenei com a cabeça e apontei a câmera para a sua face.
- Meu nome é Paola. Como o gatinho se chama?
- Carlos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Parte 3 - O silêncio impertubável das folhas ancestrais,

- Alice.
Eu disse baixo o nome, assim, seco, sem vida, como se fosse um substantivo qualquer, quando percebi alguém de cabelo curto se aproximar. Era ela acompanhada de seu semblante preocupado – as sobrancelhas denunciavam dramaticamente que algo acontecera a pouco. Me pergunto como ela conseguiu me encontrar sem ao menos ter me ligado para confirmar o nosso almoço.
- Beto, Beto, Beto!
Pos a sua mãozinha na testa e sentou em uma parte da raiz. Logo começou a falar mais e mais de como fora a sua aula e o quão medíocre ela se sentiu ao constatar que ela era a única do seu curso que realmente gostava de moda pela moda.
- Alice, você deveria fazer outra coisa.
- Tá louco? Não, não, não! Eu me recuso a desistir logo tão perto de me formar. Quando eu me formar tudo vai ser diferente, vou poder viver da minha moda, e não dessas coisas fabricadas para agradar e dar dinheiro. Eu me pergunto o que seria da Amanda sem as coisas de marca. Não posso negar que são lindas; realmente são. Mas ela não é aquilo, ela é apenas a marca, e isso ta errado. Você ficou aqui o dia inteiro?
Acenei positivamente. Alice tinha razão, em partes. Eu me sentia bem com minhas roupas de marca. Me sinto tão valorizado. Talvez essa Amanda ai apenas queria isso: valor. Deve ser uma dessas pessoas com dinheiro que gostam de viver em um mundo compartilhado. Amanda deve ser isso: vazia.
- Beto, e o Carlos hein?! Nossa, meu, ele não ligou. Ele sempre liga! Já passou meia hora e nada. E o pior é que eu não sei se eu ligo ou se eu apareço no Bloco H procurando ele. Ai, sei não, aparecer assim, coisa de mina louca; vai que ele ta lá com aqueles imbecis da arquitetura? Ai, amigo, o que eu faço? Eu sei que ele se tocou, ele é muito perspicaz. E o pior é esse tratamento de choque! Antes de você chegar nós estávamos conversando sobre o fim de semana, sabe, sobre aquele churrasco que rolou na casa do Tio dele. Ele tava lá super feliz com os amigos e a família. Acho que foi algo importante pra gente, sabe, a mãe dele até veio falar pra mim que ele raramente trás namoradas pra família conhecer. Ela mesma só conhecia aquela vaca da ex-namorada que foi pra Londres e deixou ele sozinho. Quatro anos Beto, quatro anos! Como é que ela foi capaz de deixar o Carlos aqui, só. A sogrinha tava contando que foi por esse tempo que ele conheceu o melhor amigo. Ele tava lá também e, meu deus, é um gato! Você nem acreditaria no que...
Penso que eu faria a mesma coisa e não pensaria no que poderia ter acontecido caso eu não fosse. Estamos falando de Londres, uma cidade linda, com pessoa que falam somente Ingles. Definitivamente, essa cidade é muito pequena pra mim, aqui não tem nada que me sustente, emocionalmente, artisticamente e financeiramente falando. Detesto essas pessoas, detesto esse lugar. Acho que essa ex-namorada do Carlos fez certo em ir e buscar outras aventuras. Acho que a Alice apenas não entende. Alice, Alice.
- Então, foi isso, a mãe dele me contou tudo sobre ele e esse namorinho idiota com aquela patricinha com quem ele estudou no tempo da escola. Desde então eu tenho tentado fazer ele falar sobre esse relacionamento com ela, mas, sabe, sem nunca revelar que eu sei de nada. Até mesmo porque eu realmente não sei de nada; tecnicamente, ele nunca me falou dos relacionamentos que ele teve antes de mim – ele nunca fala, é reservado, calmo, extremamente controlado. Mas quer saber, ele é um palerma e diz que não gosta muito de falar sobre as coisas e tal, mas eu sei que ele não fala mesmo porque ainda deve doer bastante.
Alice calou-se e imediatamente pôs as mãos na cabeça, pondo-se a segurar o belo cabelo com uma força incrível. O silencio vindo da ausência de suas palavras me exigia manifestar algo gentil. Alice, finalmente destruindo a harmonia sonora causada pelas folhas da árvore balançando, propôs sairmos do lugar e comermos. Andamos até o restaurante self-service que havia do outro lado da rua, perto da banca de revistas.
- Vamos sentar ali na parede, porque eu gosto um pouco dessa parte escura desse lugar ok? Ai, Beto, eu não sei, eu não sei, eu to sendo uma chata contigo né? Você ai deve ta escutando tudo e pensando como eu sou insegura. Eu sou mesmo, Beto, você sabe, sempre fui assim. As pessoas me chamam de linda e tal, enfatizam que os meus olhos são lindos e os homens realmente fazem muitas coisas pra poder ficar comigo. Mas o Carlos foi tão diferente; sei lá, ele é tímido de verdade, não foi só fingimento. Ele é reservado, cavalheiro, lindo e sabe me proporcionar esses momentos em que eu me sinto a mulher mais feliz do mundo. Não quero que acabe. Eu estou feliz após vários relacionamentos que acabaram da pior maneira possível, você sabe, Tales, Marcos, Robson, Eduardo, Adriano, todos esses e os que vieram antes deles também! Eu quero me focar na minha carreira, quero por pra frente os meus projetos, mas, agora mesmo, eu só to pensando no Carlos. Falando em Carlos, se lembra daquele melhor dele amigo que eu te falei? Ele é um gato, olhá lá, ta entrando agora de camisa social azul e calça branca, vou chamá-lo para almoçar com a gente, algum problema?
Foi então que, sem sequer eu perceber, Alice acenava para o cara que eu estava comigo mais cedo na parada de ônibus.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Parte 2 - O vinho no tapete felpudo sustenta um homem bebado

Era noite e ele já havia aberto uma segunda garrafa de vinho. Celebrava a sua nova resolução que conferia não contar jamais nenhum de seus problemas aos amigos – decisão tomada baseada na exclusiva falta de interesse dos seus amigos pelos problemas. Ai amigo, relaxa, tudo vai ficar bem, você vai encontrar uma pessoa e vai ser muito feliz. Um brinde a quem é imbecil o suficiente para acreditar que eu, logo eu, vou ter tal destino. Não espero ser tratado como pessimista ou como louco, pois realmente prefiro o termo “sensível demais às coisas”. Ora, é um fato concreto: houvera passado metade de sua vida a procura de tal pessoa, de tal felicidade proveniente de relacionamentos saudáveis e a encontrara somente pessoas repugnantes de atos perversos.
Celebrava a felicidade, inclusive nos momentos mais tristes, ainda que como uma máscara tão adequada aos momentos que houvera deixado suas marcas na face úmida. Todas essas linhas, todo esse aspecto de vida, um dia sumiriam e elem deixaria a sua marca no mundo.
Era alguém, que, sobretudo, merecia encontrar o que ele procurava. Mais do que merecer, ele precisava disso para continuar vivendo, pois não aceitaria viver sequer mais um ano sentindo inveja das situações que todos tiveram, exceto ele. Contava nos poucos dedos as pessoas que havia beijado ou com quem havia feito sexo – repetia a si, logo após os números baixos, que isso tudo era resultado de um trabalho árduo de preservação e certezas que ele tão humildemente julgava ter sobre as coisas. Gostava de pensar sobre si como uma pessoa ciente das coisas, mesmo sem não tê-las vivido pessoalmente.
Engana-se quem pensa que falamos de um homem qualquer; era um sujeito distinto e suficientemente confiante de si – até alguém que importasse o dizer justamente o contrário. Acreditava, principalmente, que pessoas que ele admirava tinham um poder sobre ele – algo que ele julgava como magia, mas que na verdade, era apenas a gana por um artifício mágico que não se encontrava em qualquer um.
- Qual é esse problema da humanidade que não me reconhece como um homem digno de carinho? O que há dentro dessas cabeças que eu tanto admiro que insistem em me ver como algo indigno de um segundo olhar? Eu sou excelente! Eu sou um excelente profissional, bonito e charmoso, que posso fornecer uma vida confortável a qualquer pessoa que deseje unir-se à minha vida! E por que todo mundo insiste em me abandonar, ou, por vezes, me trocar por uma versão mais magra, ou mais simples?
Já estava trôpego, discursando por sobre o sofá, apontando a taça de vinho tinto para um quadro que exibia a pintura de uma mulher perdida na selva. O ventilador de teto estava ligado, as luzes estavam acesas e o som estava ligado – enfim, as coisas funcionavam. Ele pensava exatamente nisso: como era engraçado tudo, exceto ele, funcionar. Rapidamente, tropeçando pelas almofadas e derrubando no tapete o resto de vinho que estava na garrafa, ele desligou o som e já com a mão estendida, voou em direção ao interruptor, arrematando em um só golpe os três botões da parede – dois das luzes e o do meio, que dizia respeito apenas ao ventilador.
Pronto, escuridão e silêncio o levariam, assim que possível, ao sono. Ele dormiria se sentindo frustrado, resmungando palavras inaudíveis, ainda vestindo a roupa que estava usando no trabalho. Deitaria no chão, agarraria uma almofada e choraria. Logo em seguida ele poria suas mãos no tapete felpudo e sentiria o conforto das suas coisas. No meio da noite, viraria seu corpo na direção contrária da luz da lua que entrava pela janela e agarraria a primeira almofada para ser a sua companheira de noite, para poder dar carinho e para não se sentir tão só. Então dormiria humilhado por si.
Despertou em seguida, ainda lembrando do último pensamento que havia tido – enquanto abria seus olhos, procurava reconstruir a sequencia lógica dos fatos que o fizera ter adormecido daquele jeito, naqueles trajes com aquela bagunça. Isso duraria mais do que o necessário, mas pela mesma janela em que a luz da lua entrava na noite passada, a luz do sol, quente, o obrigava a se mexer, a sentir calor e a voltar a viver.
Seria mais fácil hoje; ele viveria o seu dia recordando os fatos de ontem e tentando incorporar mais algum detalhe que o sustentasse dentro de si mesmo. Logo seria uma nova hora do dia e ele comeria torradas com geléia após ter tomado um banho longo e revigorante. Depois, observaria a bagunça e até tentaria começar a limpar algo, mas antes olharia o grande relógio de parede na sala e constataria estar mais atrasado que o usual. Isso o faria correr para o quarto e vestir a primeira roupa que ele encontrasse no armário bagunçado – uma calça preta, uma blusa social azul e um sapato branco. Poria a bolsa marrom e verde e no caminho para a Universidade espalharia um pouco de perfume em si.
Estaria pronto, então, para mais um dia.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Parte 1 - O feixe de luz na copa da árvore

Eu vi esse garoto encostado em uma árvore na parada de ônibus escutando a sua música. Ele fechava os olhos e tentava expressar exatamente o sentimento que ele sentia ao ouvir a música. Nós, do lado de fora, apenas víamos; alguns riam, outros apenas olhavam – eu admirava. A situação era, realmente, engraçada; ele parecia estar preso em um clipe musical.
De repente, ele parou um pouco e olhou para seu ônibus. Foi então quando eu pude perceber o quão bonito aquele garoto era. Ele usava uma camisa social azul que, por algum motivo, implorava ser abraçada. Sua bolsa verde e marrom segurava um chaveiro com a bandeira do Canadá. Ele usava um sapato branco que estava muito sujo e uma calça completamente preta.
Ao subir no ônibus, ele escolheu um dos cantos e lá permaneceu até o final da viagem aonde desceu comigo, na parada mais próxima à Universidade. Foi somente quando ele passou apressado por mim, olhando para ambos os lados da rua, que eu pude sentir o seu cheiro. Imediatamente, fui obrigado a puxar todo o ar que havia ao meu redor, e viajar pelos lugares mais confortáveis da minha imaginação, e só então, de repente, quando já não tinha mais ar algum para inspirar, eu pude voltar me concentrar nos barulhos do carro e atravessar a rua.
De alguma distância eu o observava andar, entrando pelo pátio da Universidade, passando pelas plantas. Não pude ter certeza, nem jamais poderei, mas eu continuo pensando que ele sorria para as flores enquanto cruzava aquele pátio. Era a minha parte favorita da Universidade, pois nela se encontravam várias flores coloridas; era a minha maneira particular de voltar a sentir a natureza que não havia mais em lugar algum.
Ele continuou andando na minha frente e, ocasionalmente, ele virava a cabeça discretamente, como quem olha pra trás e rapidamente se arrepende de tê-lo feito. Não estava pensando direito, mas talvez fosse possível que ele tenha notado que eu o seguia. Então, por esse único motivo, eu parei um pouco e fiquei observando ele andar ainda mais, até dobrar em um desses prédios e sumir da minha vista.
Pude, então, voltar em paz para o meu próprio lugar e pensar um pouco sobre as coisas que haviam acontecido. Estava um pouco confuso pelo efeito penetrante que aquela pessoa tinha sobre mim. Fui pensando aleatoriamente, de bloco em bloco, esperando passar os 15 primeiros minutos de aula, pensando em quem era aquele rapaz. Andei por fontes, plantas, estatuas e aglomerados de outros alunos.
Avistei Carlos, da Arquitetura, conversando com Alice, sua namorada, perto da árvore que fazia a maior sombra por aquele lugar. Alice parecia um pouco nervosa; não podia dizer nada de Carlos, apenas que ele estava usando uma camisa verde muito interessante. Andei em direção ao casal, ainda sem saber o motivo pelo qual eu deveria me aproximar dos dois. Foi somente quando estava bem perto que pude nota que Alice de repente olhou em minha direção e mudou sua expressão drasticamente, de modo que Carlos pudesse se virar e ver que alguém chegava. É claro que algo estava errado.
- Roberto, cara, quanto tempo!
- Bom dia – digo eu, sorrindo timidamente, segurando com muita força as duas alças da minha mochila pesada.
Roberto sorri de volta e Alice fala alguma coisa sobre alguma coisa que não me interessava, então finjo que escuto e olho para os feixes de luz que saiam da copa da árvore. Era realmente uma árvore muito grande. Ao notar que Alice terminara seu discurso, digo algo do tipo, “será que a gente poderia se encontrar pra almoçar?”. O casal tenta falar algo com dificuldade, se entreolham e, então, Roberto diz que está atrasado para a sua aula e parte, fugindo daquilo tudo.
- Você viu, Beto? Ele ta com ódio de mim por causa daquele lance lá do concurso.
- Ele tava? Não notei nada não – minto. Ele é sempre tão simpático, ainda acho que ele é o melhor namorado que você arrumou.
- Ele ta, eu sei que ele ta, ele não me engana, eu conheço o Carlos. Tu ta indo pra onde?
- Eu tenho que ir praquela aula ridícula do Carneiro.
Alice olha no relógio e alerta efusivamente que já passam 15 minutos após o início da aula. Mesmo não estudando com os mesmos professores, ela sabe que o Carneiro é conhecido por ser um daqueles professores que cobram demais dos alunos e que detesta quando os alunos não são exemplares.
- Eu sei – sorrio agradecido, deixando transparecer que, na verdade, a intenção é realmente irritá-lo.
- Toma cuidado Beto, ele pode...
- Eu sei, ele pode tudo, porque ele é o Carneiro, e está aqui desde sempre, e conhece muitas pessoas capazes de transformar minha vida em um verdadeiro inferno nessa Universidade. Eu sei, eu sei, eu estou ciente de tudo isso.
Alice ri um pouco e enquanto andamos em direção aos nossos respectivos blocos, ela continua falando sobre a certeza absoluta que ela já tem sobre o Carlos está com raiva dela, sobre o lance do seu fim de semana, sobre a sua indecisão de escolher um desenho para a sua nova tatuagem e finalmente, sobre como ela detesta essas meninas frescas que fazem parte da sua turma de Estilismo.
- Uma menina apareceu ontem com uma bolsa de 450 reais – 450 reais! – e eu não acreditei no absurdo que é uma bolsa daquelas. Com certeza, era linda. Com certeza, ela tem dinheiro pra gastar... mas parece tão errado. Ai meu deus, são 08:00! Beto, to super atrasada, a gente almoça, né? Me liga as 11:15, ok? Valeu por sempre me escutar, você salvou o meu dia, tchaaaaaaaau.
Alice deu meia volta, correndo e desviando de vários bancos e pessoas. Antes de dobrar na primeira entrada, parou um pouco, olhou pra mim e acenou novamente com a mão, erguendo o mais alto possível. Logo em seguida mandou um beijo e desapareceu.
Permaneci parado, olhando para o lugar em que Alice houvera a pouco me entregado seu beijo. Fechei meus olhos um pouco. Eu ainda estava um pouco confuso com aquele cheiro; por algum motivo parecia que aquele mesmo cheiro já fora importante para mim em algum momento. Eu ainda estava segurando a alça da minha bolsa firmemente, quando eu abri os olhos. Num ato automático, soltei uma das mãos e deixei um dos olhos observar o relógio. Estava um pouco mais tarde do que eu imaginava.
Dei meia volta em direção àquela árvore que nós estávamos há poucos instantes e me reclinei sobre seu tronco. Fui deslizando lenta e dolorosamente em direção à grama fria do chão. Eu havia fracassado; no final, eu já sábia. Não adiantava mais chegar a aula, pois eu já estava atrasado para estar atrasado. Ainda havia vários minutos antes da aula do segundo período começar. Por isso, retirei da minha bolsa um livro e comecei a lê-lo.