quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sim, porque sim é assim.

Ele morria com a mesma velocidade necessária para fazer um relógio andar mais rápido. Suavizava a morte, era parte da vida, pensava. Não, não mesmo. Morrer é parte outra. Mas ele morria sem saber, morria e morria mesmo. Morria pelos dias que passaram e morria pelos dias que nem chegaram ainda. Como se chama o finado? Rubens. Quem é Rubens? Não lembro, faz tempo.
Andava com expressão cansada. Cansada mesmo, de tudo o que tinha vivido.Aquilo precisava morrer, mas não ele. Ele não morria, ele apenas vivia morrendo suas coisas. Seus pais, ainda andando, diziam que era coisa dele, que era normal e que era bom deixar. Deixar? Sim, deixar, era melhor deixar. Então ele deixava, sem saber se fazia bem ou mal. Mas não, ele não podia, ainda andava, cansava deixar.
Chegava aos lugares, pensando em como poder pensar sem ofender. Ainda andava, mas pensava mais do que andava. Como resolver o que sempre foi deixado? Certamente não deixando. Deixar não pode, pois nunca resolveu. O que pode é não pensar, e sim resolver. E fazer o que? Ainda andava, pensava e resolvia, sem nenhuma conclusão.
Uma mão o encosta:
- Quem?
- Oi, as horas, por favor?
- Não uso relógios, porque a pergunta?
- Achei que era a hora de mudar, não seria a hora de mudar?
- Não sei se era ou se é. Eu não sei se a hora chega ou se passa, mas eu sei que ela existe. Já mudou algo hoje?
- Pra onde você anda?
- Minha casa. Responda, pra onde a gente muda?
- Não sei, achei que você soubesse.
Agora ele pensava dois pontos reticência. Eu sei, eu deixei, eu mudei, mas não mudei tudo, eu mudei o que eu não quis mudar. Eu devia mudar o que eu não consigo. Mas isso é traição, isso é deixar e deixar é morrer. Acomodar é viver com morte um dia inteiro e dormir ao seu lado. Dormir é morrer ou acordar?
Anda, anda e anda. As pessoas, quem, as pessoas? Sim, elas andam, mas não pensam. Penso que não pensam porque nenhuma delas parece morrer, só parecem andar. Pra onde? Pra casa, eu acho. Mas não sei, acho que não sei. Quem sabe já morreu. Pensou demais, é crime, e você morre. Sim, você morre. Quem pensa morre. E quem não pensa? Não sei, acho que não sei.
Parou, chegou. Abriu sua porta. Colocou os livros na mesa. Tirou os sapatos. Sentou no sofá. Fechou os olhos. Adormeceu, mas não morreu – na verdade, adormeceu e acordou. Voltou a andar. Chegou aonde tinha que estar. Cumprimentou, beijou, abraçou, trabalhou e se irritou. Voltou a andar, voltou a chegar, voltou a dormir.
Passou o tempo, pensou no tempo, morreu no tempo.
Mas sempre acorda, sempre volta. Sempre há uma nova chance de morrer, porque morrer é sublime ao ponto de ninguém saber o que é morrer. Sabe-se que morre porque ninguém jamais volta a viver. Voltar a viver é pecado, e isso não pode ficar deixando. Tem mesmo que ajeitar. Morreu, ta morto. Não se volta pra não confundir ninguém. Fantasma de jeito nenhum, é tudo morto que quer contar o segredo da morte pra quem nem pensa em morrer. Não se pensa em morrer, se pensa enquanto anda, se pensa enquanto se pensa, se pensa enquanto se vive. Morre-se quando para de pensar. Isso é morte.
Começou a escrever linhas, a pintar tintas e gravar vozes em pequenas fitas cassetes. Separou uma bermuda, uma blusa, uma escova de dentes, um pedaço do cabelo e os bens que mais amava e os guardou em um baú, no fundo do mar. Nada molhava e não se sabe porque. Deixaria esse pensamento como herança para outra pessoa que consiga pensar no por que das coisas.Pensava por hora nele, no porque dele ter feito um baú. Não era pirata, baú quem tem é eles que sabiam esconder as coisas. Eu não. Eu joguei ai no mar, porque de qualquer forma, eu iria morrer se fosse achar aquelas coisas que não molhavam nunca.
Guardou a lembrança, pelo menos como lembrança de um dia ter feito algo insano. Os anos passaram se e ele voltou a voltar a fazer as coisas. Pensava em coisas mais diferentes, não sobre andar, não sobre morrer. Sobre as centopéias, sobre as luzes e sobre a eletricidade. Pesar em eletricidade era diferente, porque nunca era possível saber aonde ela se escondia. É rápida, eu sei, mas ela nem sempre é um choque. Ela é algo humano, do mal, que por hora não faz mal a ninguém. Mas ela é má, porque dói. Coisas que doem assim não podem ser boas. Pensou na televisão levando choques pra funcionar. Ninguém merece levar choques pra funcionar. Pode-se levar um choque apenas uma vez para saber que eletricidade é ruim.
Às escuras, na medida do possível, vivia. Vivia com medo, mas vivia. Escondia-se na casa escura, fugindo da eletricidade. Era sensível, bem se lembrava. Os pais falavam deixa, é assim esmo, fazer o que? Não se sabe, mas essa é a graça. Fazer o que? Fazer eletricidade é ruim, nem se pode pensar demais porque se morre. Se morre? Não sei; morre, eu sei - mas não sei “se morre”. Não pode-se pensar em pensar em morrer, porque, não-não-não, deus me livre. Não se culpa deus pela morte de ninguém. Se culpa deus por tudo, mas não se culpa em voz alta, porque deus castiga.
Dizem tanto de deus. Mas como se sabe de deus? Não se sabe nada de deus, porque Deus é escrito com letra maiúscula, tem de respeitar. Não tem que se repeitar, tem de se respeitar, porque um usar que demais é feio e dois respeitar é uma obrigação. Que? Sim, sem “que,” obrigação sim: deus é quem sabe morrer.