quarta-feira, 30 de maio de 2012

O brilho das estrelas mortas

O trabalho acumulado em cima da mesa o entrertia; era bem verdade que os prazos curtos, a vida passando rápido, em pequenos grandes ciclos de seis meses, a falta de férias e a saudade dos velhos tempos o incomodavam. A quarta-feira se encerraria em nove minutos; logo, então, seria outro dia, um dia a menos para traduzir o resumo do artigo que seria enviado em tantos dias. Daqui pra lá, um seminário teria sido apresentado, um fim de semana terá sido desperdiçado em frente ao computador e apenas uma dessas noites seria dedicada ao sono. A janela estava aberta naquela ocasião especial: era noite escura, com poucas estrelas. O barulho dos carros alienígenas já não incomodava; muito pelo contrário: o fazia companhia. Tanto pelo doce devaneio de que outras pessoas viviam a vida que ele tanto se esforçava para ter, como pela imprevisibilidade do corte sonoro que uma buzina apressada manifestava. Esporadicamente, alguns gritos ou xingamentos inaudíveis penetravam o seu escritório; serviam de despertadores mentais cuja obrigação é trazê-lo de volta à sua realidade, que era simples: faltava algo que ele não queria em sua vida A partir desse absurdo que é querer algo que não se quer, ele começou a analisar a situação: faltavam nove minutos para o fim da noite; aquela mesma noite como tantas outras, que seria destinada a escolha do léxico apropriado. Dizer o que deve ser dito com as palavras que são usadas para dizer o que se quer dizer é uma arte. Ele mesmo, ainda que não estivesse utilizando sua linguagem acadêmica, se utilizava dos microssegundos do prazo apertado estabelecido para a entrega da sua produção intelectual para se prevenir de mal entendidos: ora dizia que alguém não havia sido tão prestativa quanto esperava, ora dizia que fulana era uma imprestável e que jamais formariam dupla novamente – logo em seguida fazia uma piada sobre algo popular, sorria e caminhava rapidamente a outro refugio, deixando as pessoas com quem conversava falando sobre a sua postura. Sentiu raiva, primeiro, quando olhou o relógio do computador no canto direito da tela acusar oito minutos para o fim do dia; constatou, sem perder tempo, que a noite definitivamente acabaria com ele antes que pudesse acabar com ela. Em revolta-muda escorregou a mão por todo o painel de botões do monitor, ainda sem entender muito bem aonde ele deveria apertar para que o monitor desligasse. Sempre que fazia isso refletia como a tecnologia havia mudado e como os botões eram desnecessários hoje em dia. Adorava apertar botão de todos os tipos – era apaixonado pelos botões que faziam borracha. Era noite, ainda; faltavam sete minutos inteiros, completos e cheios de vida para serem vividos ou desperdiçados. Deitou sua cabeça sobre os braços ainda cobertos com a camisa social listrada. Sentiu o cheiro do final do dia misturado ao amaciante usado na lavagem daquela que já era uma de suas camisas favoritas. Sentiu a exaustão se esvair enquanto ele tirava os óculos e silenciosamente anunciava: desisto, já não consigo mais ser ninguém. Esfregava os olhos, tanto com as mãos quanto com as próprias pálpebras, despertando do estado de morte súbita que lhe abatia. Agora sim, podia pensar em alguém. Mas quem? Durante um minuto inteiro procurou o sentimento de amor tanto comentado pelos seus amigos. Na sua cabeça não havia registro de alguém com demasiada importância; haviam, no entanto, idéias, objetivos, pequenos sonhos de consumos e vários desafetos. Pensou em um garoto excepcional que não era determinado o suficiente para chegar ao ponto máximo de qualquer coisa. Ele dizia que o futuro era agora e então começava a viver o passado como se fosse presente. Incomodava-me pensar que alguém se vangloriasse por ter tamanha estupidez guardada em poucas palavras. Alguém, em qualquer lugar, diria que já era meia noite. Isso é uma inverdade; os cinco minutos finais da noite talvez fossem a única oportunidade concreta de conseguir vislumbrar a magia face escura da noite. Levantou-se, desabotoando os primeiros botões da camisa com a mão esquerda. Encostou-se em um dos lados da janela e contemplou a noite fraca, sofrida e moribunda. As estrelas, ainda que cheias de vida, eram poucas e separadas. Aonde havia parado aquele garoto de dezesseis anos que contemplava as estrelas e escrevia poemas inedibriado pelo poder que elas exerciam sobre sua pele sensível? Entregou-se a tentação de chorar de saudade, ou de luto, ou apenas por admirar um momento simples. Imediatamente, voltou ao computador. Ligou o monitor e rapidamente abriu o editor de textos. Sentira a necessidade urgente de eternizar aquele momento simples através da escrita da mesma poesia nostálgica que o fez chorar a pouco. Olhou atentamente para a branquidão que se refletia na sua face e durante um minuto procurou palavras que transmitissem a mensagem que nem mesmo ele estava certo de ter compreendido. Antes que pudesse escolher a primeira palavra que se encaixava, parou; não era ninguém – nem nunca seria. A Literatura, como um todo, não se enriqueceria com as suas contribuições. Os leitores, sobretudo, não se deleitariam com as coisas que ele tinha pra dizer, e ele, pobre ele, sequer seria capaz de acreditar que sairia algo. Digeriu o sentimento amargo de incompetência silenciosamente; pouco a pouco voltava a sua dura realidade. Levantou-se novamente e caminhou até a geladeira, procurando água, suco, achocolatado, refrigerante, isotônico ou álcool. Nada encontrava – apenas luz. Luz, luz, luz, que há tanto tempo tem sido símbolo de tanta coisa sem graça, que há tanto tempo tem sido desejado em orações, que há tanto tempo tem iluminado de tantas maneiras tantas pessoas. A luz, que ele detestava nesse momento, ofuscava seus olhos, quase o cegando com tanta verdade. Era noite. Mas em um minuto seria um novo dia, um novo prazo, um novo cotidiano, uma nova luz, um novo julgamento sobre um novo trabalho, uma nova roupa com cheiro de amaciante. Tudo se renovaria, inclusive a noite, que ainda seria escura. Só não se renovariam as estrelas, que até então já podem estar inclusive mortas sem sequer saberem, lembrando eternamente que eu, morto, talvez também brilhe para uma outra estrela do outro lado do universo