sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Nádia e Roberto - Parte IV

- Querido, você sabe que dia é hoje?
- Sim, terça-feira.
- Eu sei, mas hoje é um dia especial.
- Todos os dias são especiais, querida.
- Roberto, hoje é um dia muitissimo importante para nós, enquanto casal.
- Ah... claro que hoje é um dia muito importante...
- Sim, querido, exatamente. Hoje fazem 15 anos que...
- Isso mesmo, 15 anos! Como o tempo passa rápido né?
- ROBERTO, NÃO ME DIGA QUE VOCÊ ESQUECEU QUE DIA É HOJE?
- Amorzinho! Como você acha que eu esqueceria essa data tão importante?
- Francamente, eu tenho certeza que você não lembra. Claro, os homens nunca se lembram dessas datas.
- Meu amor, você está ficando louca?
- E toda vez é a mesma coisa, agora eu sou a louca...
- Não, amor !!! eu não disse que você era louca, eu só...
- Roberto, você está me chamando de mentirosa?
- Não, amor !!! eu não disse que você era mentirosa, eu só...
- Disse, mas tudo bem, eu estou tranquila, não esqueci.
- Esqueceu o que?
- De hoje, o dia mais importante do mundo para nós dois.
- Mas amor, 15 anos atrás foi o dia mais importante pra mim.
- Erg... mas hoje é tão importante quanto 15 anos atrás.
- Eu não acho.
- Não acha o que?
- Não acho que hope é mais importante que 15 anos atrás.
- Lógico que sim
- Lógico que não
- Porque?
- Porque 15 anos atrás eu tinha meu cabelo grande, e hoje ele é bem curto.
- ROBERTO VOCÊ ME DEIXA LOUCA!
- Olha! Viu? Depois eu e chamo de louca...
- Sinceramente, eu não acredito que você esqueceu.
- Mas eu não esqueci!
- Então que dia é hoje?
- Terça-feira?
- Não é uma terça-feira, meu amor.
- Como assim? Hoje é terça-feira sim senhora, não é garçom?
- É sim senhor, já vão pedir?
- Claro, o de sempre, com aquele detalhe que faz toda a diferença.
- O detalhe que faz toda a diferença será o meu salto na sua testa, seu insensível.
- 15 anos atrás foi uma sexta-feira.
- Lógico que foi.
- E foi uma sexta-feira importante.
- Lógico que sim, mas você não se lembra porque.
- Claro que eu sei!
- Não sabe, pare de mentir.
- Você, por uma acaso, você está me chamando de mentiroso?
- Não amor, eu não quis dizer isso, eu só...
- Então, agora eu estou ficando louco?
- Roberto, MEU QUERIDO, ambos sabemos que você não sabe que dia é hoje!
- Nádia, MEU AMOR, o que você não sabe, é que eu sei sim que dia é hoje!
- Sério? Ai, eu estou tão envergonhada, achei que você tinha se esquecido.
- Eu nunca me esqueceria de uma data tão importante.
- Muito importante mesmo Roberto.
- É!
- É mesmo.
- E eu nem tenho palavras pra descrever o quanto feliz eu estou.
- Roberto, que dia é hoje?
- Terça-feira?
- SEU MENTIROSO, VOCÊ NÃO PRESTA! EU NUNCA VOU TE PERDOAR!
- Mas eu não esqueci...
- Que dia é hoje meu amor?
- Tá, eu esqueci... mas me perdoa, eu ando tão cansado, você me faz feliz demais...
- Roberto, hoje fazem 15 anos que nós demos o nosso primeiro beijo!
- Sério? Amor...
- VOCÊ É UM CALHORDA, UM IMBECIL, EU NUNCA MAIS QUERO..
- Amor...
- NÃO! VOCÊ NÃO VAI ESCAPAR DESSA TÃO FÁCIL.
- Amor... não é na semana que vem?

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Ela era assim.

Eu era infinitamente mais sensível que ela, mas em compensação ela sabia maltratar todo mundo, principalmente a mim, com aquele olhar fixo de quem prever o futuro. Eu nunca a vi chorar, acho inclusive que ela nunca chorou, já eu choro por tudo, mesmo quando não devo. Eramos crianças, totalmente inocentes e sinceros. Quando lembramos o que falavamos um ao outro, perdoamo-nos por tudo, mas lá no fundo sabemos que esse perdão é mais falso que aquela felicidade fingida quando ela soube que eu tirei uma nota maior em Português. Eu era tudo o que ela queria ser, e eu queria ser tudo o que ela mais detestava nela mesma.
Ela quebrou meu boneco favorito, e eu chorei em frente àqueles olhos malígnos. Ela consegiu me fazer inferior, e sempre que olho pra ela eu vejo o corpo dele sem o braço direito. A mãe dela comprou outro boneco exatamente igual ao meu. Eu recebi das mãos crueis daquela garota chata um novo boneco com um novo braço, mas apenas porque minha mãe me obrigou. Ela foi a primeira mulher que tentou substituir algo que era meu, por alguma coisa que já me pertencia, mas que mesmo tempo não era minha e que também me fez chorar compulsivamente.
Planejei a maior vingança que minha bondade poderia construir. Eu escondi o io-iô preferido dela, apenas pra dar um susto e fazê-la chorar na minha frente, exatamente como ela havia feito comigo; eu ia devolvê-lo no momento em que eu visse as lagrimas caindo, mas a lágrima não caiu. Eu tive que ver a tristeza estampada em seu rosto, que não tinha maldade nenhuma; ao invés disso, tinha uma expressão angelical que me fazia sentir um monstro. Foi quando eu aprendi que eu nunca seria malvado, porque sou demasiadamente apático e justo, mas que de alguma forma era necessário.
A partir desse momento em que eu queria tanto fazê-la sofrer, eu virei o próprio sofredor. Cada vez que eu queria atingí-la de qualquer forma, ela me ensinava pelo caminho mais dificil que ela sempre seria muito maior do que eu poderia imaginar. Quanto mais forte ela ficava, mais eu me sentia inferior. Ela estava salva em uma espécie de bolha, e eu estava completamente vulnerável a tudo. O que ela determinava era decreto, e mesmo eu querendo infligir as regras, algo dentro de mim me precavia dos perigosos possíveis.
Em um belo dia de chuva ela se mudou, soube da noticia por uma das professoras de Português . Curiosade ou não, choveu por muito tempo. Ela foi embora e sugou toda a alegria do dia, das nuvens fofas e brancas, do cheiro de terra seca. Choveu por muito tempo mesmo, e eu acostumei a ficar dentro de casa, pensando nela. As gotas d’água caiam e eu não entendia por que eu fiquei tão vazio depois que ela foi embora. As gotas d´água continuaram caindo, e eu continuei pensando naquela vez em que eu quase fiz ela passar a maior vergonha da sua vida. As gotas d´água continuaram caindo, e eu continuei pensando como ela era bonita e em como eu tinha ficado infeliz sem ela. As gotas d’água continuaram caindo e, enfim, eu chorei por alguém que não se lembrava mais de mim.
Em uma aula de Matemática ela apareceu, e pra variar, eu, escondido na útilma carteira da ponta esquerda, aquela que fica perto da tartaruga que ela deu à escola, chorei. Mas dessa vez, de tão escondido que eu estava, ela não me viu. Mas eu a vi; e ela me procurava com seus olhos de maldade. Apenas quando ela não me achou, eu pude ver que uma lágrima caiu como um meteoro desgovernado. Permaneci sentado, sem crer no que via. No recreio, eu apareci e ofereci metade do meu misto quente. Ela ficou feliz de verdade com a minha atitude. Quando eu perguntei se ela tinha chorado, ela disse: foi só um cisco. E me deu um beijo na testa.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fome do mundo.

Eu tinha toda essa ilusão que somente a comida me faria bem. Então, comia com tanta vontade, com tanta verdade, que eu tinha toda a fome do mundo. Dentre as minhas lanchonetes favoritas, tinha esta, que servia um tipo único de salgado; o mais delicioso que eu comi em toda a minha vida. Nos tempos negros, chegava com tanta vontade de comer, que não saberia distinguir isso da fome. Por isso eu tive, durante algum tempo, a pior fome do mundo.
Eu comia demais, e não me sastifazia com facilidade. Eu culpava o mundo da minha fome inexplicável, sem saber que eu era o culpado. Os efeitos da minha fome iam além da minha imaginação; a única coisa que me sastifazia era o salgado daquela lanchonete. Poderia falar de como ele é delicioso, mas eu sei que eu nunca vou conseguir explicar algo tão especial pra mim, e mesmo que tente, o sabor não ficará igual.
Foi nessa fome do mundo, e em um período de grandes crises, que eu fui à lanchonete, comer meu pecado feliz. E lá estava ele relusente, dentro da estufa, esperando apenas por mim, no seu direito de servir aos famintos, e eu faminto, no direito de integrá-lo a mim. O salgado co-existia dentro de mim, me fazendo uma pessoa mais feliz a cada dia. E eu me pergunto: o que dele ainda existe dentro de mim?
Todas aquelas vezes em que fui àquele lugar, tão faminto de tudo, esqueci de olhar pra mim, do lado de fora: estava mais gordo. Mas isso não era o problema real; eu continuava com toda fome. Eu já me desesperava, e quanto mais fome me dava, mais eu comia, e quanto mais eu queria comer, mais me dava fome. Foi então, que já triste comigo, fui a lanchonete, satisfazer minha fome infinita. Foi a última vez que eu fui àquele lugar.
Quando eu já estava sentado à mesa, quase com o salgado na boca, um mendigo deplorável parou no lado de fora e pediu um pedaço do meu salgado. Eu, com toda a fome do mundo, fiquei olhando ele por um tempo, ainda com a boca aberta, pronto pra comer tudo aquilo. O homem, somente ele, tinha tanta mais fome insesiável que eu. Eu, ambicioso e egoísta, olhei em seus olhos e disse: não.
Não sei como pude. Não sei como fiz. Sei que a partir daquele momento, eu não tive toda a fome do mundo nunca mais.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Eu nunca quebrei a perna.

Que tipo de pessoa precisa tão desesperadamente quebrar a perna pra chamar atenção? Talvez eu, no meu sonho impossível de ter atenção da família e a perna com nomes dos amigos do jardim de infância. Se eu ainda não quebrei a perna, como vou poderei dizer que senti dor? Eu não guardo histórias de quedas de bicicleta, porque meu pai quis me ensinar, mas eu nunca aprendi; eu sempre caia e fazia muito drama. Um dia ele vendeu minha bicicleta; mal sabia ele que vendeu junto com ela os meus sonhos infantis. Só aprendi efetivamente a andar sobre duas rodas quando um amigo, o melhor e mais bem determinado que eu tenho, admitiu que eu não poderia deixar de sentir a liberdade à duas rodas. Mesmo eu atropelando todo mundo, inclusive ele, inclusive os próprios ciclistas, mesmo quando eu praticava na calçada, mesmo assim, atropelando tudo que se movia, eu aprendi. Demorou 14 anos. Quando os meus colegas quebravam a perna, eu nunca assinava. Exceção da Annabelle, minha melhor amiga do jardim. Ela não sabia andar de bicicleta, mas tinha uma bicicleta com cestinha rósea. Juntos, formávamos um belo par. Enquanto alguns gastavam a pintura, empenavam as rodas e furavam os pneus, nossas bicicletas reinavam juntas. Tínhamos rodinhas, e isso era a coisa mais incrível que poderia acontecer. Annabelle e eu perdemos nossas rodas, e depois as bicicletas foram substituídas por outras brincadeiras menos perigosas. Queria saber se Annabelle aprendeu a andar de bicicleta; não nos falamos desde a 5ª série, quando ela começou a me achar esquisito. Quando meu pai tirou as rodas, as minhas rodas, eu pude usar o freio pela primeira vez. Mas não usei; nunca gostei, nunca soube o momento certo de parar. Todos os meus erros são por falta de freio na hora certa ou por freios antecipados. Como poderei usar o freio, se toda vez que eu penso em usá-lo eu sou arremessado pra frente, e atropelado por minha própria bicicleta; tudo isso por que eu sempre pedalo muito rápido, por tudo. Por saber andar sobre rodas, eu virei uma bicicleta, que no inicio era muito bonita e simpática. Devido a minha pressa de viver hoje, eu sou uma bicicleta sem rodinhas, sem freio, sem rumo, sem pintura, sem controle e com medo da dor. Sei que um dia eu vou bater em alguma coisa. Às vezes eu me pergunto, mesmo já sabendo a resposta, por que demorou tanto pra isso tudo acontecer. Eu mesmo aprendi que viver dói, e que eu tenho medo da dor. Aprendi a fazer tudo sem sofrer, e se sofrer, sempre o mínimo. Mesmo que demore, mesmo com tudo. Saber que eu não vou sofrer me dá forças, mas também me torna covarde. É por isso que eu me acho tão bom demais pra nunca estar errado. É por estar errado o tempo todo, que eu finjo tão bem estar certo, e todos acreditam. Inclusive eu. Por mais que eu ame meu pai, sei que a culpa é dele – também sei que estou errado. O meu medo de viver, a minha perna saudável, esse texto; é responsabilidade dele. Sou tão parecido com ele, que talvez ele ainda não tenha quebrado a perna. Meu velho me deu tanta coisa nessa vida e retirou tanta coisa que eu, de fato, não precisava. As rodinhas da minha bicicleta azul, por exemplo. Ensinou a nunca cair e a fazer tudo no dia certo, com calma, sem erros. E se um dia eu conseguir ser um herói para o meu filho, não vou ensiná-lo a andar de bicicleta.
Mas se ele me pedir, eu farei. E se ele quebrar a perna serei o primeiro a assinar sua perna.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O dia do finado:

Ontem foi o dia dos finados e eu fui, inocente, ao Shopping. Me esqueci de celebrar o finado-eu, que morreu em algum tempo do passado. Não sinto a mínima saudade dele. O que eu era hoje não me cativa, não me faz falta e não me implica relevância. Só me sinto incomodado em saber que em algum lugar de dentro de mim, aquela pessoa inocente morreu e nem teve a chance de viver. Eu não vou me velar no dia em que posso ir ao Shopping, gastar dinheiro e ter a diversão sincera que qualquer finado queria ter. Não vou desperdiçar tempo com alguém que está mais que feliz por estar morto. Deixa ele descansar em paz no fim do mundo, de onde eu sai, e pra onde várias vezes eu tentei voltar, sem êxito. Eu fui ver filme, e senti a falta de uma mão pra eu apertar quando os sustos chegaram. Eu fui ver filme, e senti a falta de um ombro pra esconder a minha falsa cara de medo. Eu fui ver filme, mas eu senti medo de sentar sozinho e estar cercado de gente que também estava sozinha, e que fingia estar acompanhada. Eu fui ver filme, mas eu me senti mal, por não ter ido antes comigo mesmo. Pois eu estava lá, mas me ignorei e morri. Não me sentia a vontade sabendo que dentro de mim, alguém não teve a chance de ser feliz. Foi então quando o filme acabou e eu permaneci olhando para as poltronas, imaginando quantas pessoas que morreram sentaram nelas; e quantas delas riram nas comédias, choraram nos dramas, e sentiram o medo dos filmes de terror, exatamente como eu fizera momentos antes. Me lembrei do dia da minha morte. Acontecera anos atrás; e o mais estranho de tudo, é que eu morri exatamente naquela sala de cinema, na última cadeira da direita e que por algum motivo, eu estava lá, quase morrendo de saudades de mim, discretamente chorando, me maldizendo por deixar-me morrer tão rapidamente. Em luto, eu permanecia sentado ali. Aquela cadeira tornara-se meu túmulo silencioso e por apenas um dia de domingo todo aquele Shopping se transformava-se o meu cemitério.